Desde que me entendo por gente, e um pouco antes disso, moro na mesma casa em frente a uma praça. Durante a minha infância ela era o nosso terreno baldio. Só tinha 4 árvores (mangueiras sempre carregadas) e muita lama. Brincávamos, se lambuzavam (os outros porque eu sempre fui uma lady), corríamos e levávamos nossos cachorros para se aliviarem, sem a postura politicamente correta do saquinho, até porque nessa época isso não existia.
Então numa determinada eleição, quando já era adolescente, um político tomou a frente de transformar nosso terreno, céu, e deleite em praça. Nada contra praças, se bem cuidadas e com bom planejamento elas se tornam adoráveis, um primor para os olhos e para a valorização da sua casa. Minha praça, que agora tem um nome, possui um grande campo de cimento poliesportivo, uma rampa de skate completamente mal projetada (os skatistas irão me entender), um parquinho que é a alegria das crianças menores, mais árvores e mesas com banquinhos onde os namorados e não-ocupados de plantão se instalam. O problema não é a praça em si, mas seu entorno. Ela acabou se tornando o ponto de encontro de espécies tão diferentes que conseguem viver no caos com alguma ordem de socialização. Ela acabou por se tornar cosmopolita por que é formada pelas mais diferentes culturas que antes nem se entrecruzavam, apesar da pouca distância entre as residências.
Os personagens:
1. As crianças: Elas ocupam todo tempo a praça. As que estudam de manhã, vão à tarde. As que estudam à tarde vão de manhã e todos ficam no mínimo até meia-noite, brincando, jogando bola, gritando, correndo, xingando-se e fazendo coisas normais para as crianças (ou pré-adolescentes). Ressalto aqui que eu gosto de crianças, até porque sou professora. O problema em si é a acústica da praça. Eu não sei como o engenheiro ou arquiteto conseguiu essa proeza, mas eu juro que agora o barulho é insurrecedor. Uma palavra delas fere nossos ouvidos e parecem perfurar os tímpanos. Ainda mais com essa cultura atual de gritar o tempo todo.
2. Os peguetes: isso mesmo, como o nome diz eles se pegam. Ficam nos cantos ou no meio da praça. Tanto faz o lugar desde que um deles possa estar ancorado em uma parede ou grade. É tamanha a confusão corporal que nunca sei quantas pessoas estão ali, duas, três, homem, mulher ou nenhum dos dois. Eles em geral chegam à tarde e ficam até o nascer do sol. Ninguém sabe o que fazem, se estudam ou trabalham, ele apenas "se pegam". Passam as mãos, bocas e cabelos em todos cantos que é praticamente um filme pornô ao vivo.
3. As "prostigapiranhas": essas receberam o carinhoso apelido da minha mãe, ao comparar o comportamento de nossa primeira gata (que se chamava Xana, então vocês já imaginaram o comportamento, não é?!) com essa crescente população. Em geral, elas foram as peguetes que "digievoluíram" para essa espécie. Não vão com qualquer um, são seletivas. Elas atiram seus rebolados e malícia para os alvos em potencial: garotos que podem "crescer na vida" e sustentá-las. São o horror de qualquer mãe (recebem a designação de "pistoleiras"), e sua principal arma as suas três partes anatômicas que começa com "B" (boca, bu%$#* e bunda). Têm filhos antes dos 20 anos e tornam-se horrorosas aos 27.
4. Os vagabundos: esses não fazem nada da vida. Sentam-se nas calçadas, nos bancos, mesas e escadas. Quando não têm um espacinho sobrando, vão em casa e pegam a cadeira da praia. Chegam quase no mesmo horário dos peguetes. Suas barrigas aumentam na mesma proporção de tempo que não praticam atividades físicas. E embora as prostigapiranhas os evitem, sabe-se que são a eles que recorrem nos momentos de carência.
5. As velhinhas do Suderj: Elas têm dois horários de encontro, 7h e 18h. São as mais empolgadas. Ficam felissíssimas com as aulas de ginástica da professora. Se esforçam bastante nos alongamentos e agachamentos. E em todos dias festivos trazem delícias para aumentar sua massa corporal. São as titias e vovós que até então ficavam o dia inteiro em casa, oprimidas pela presença esmagadora dos outros personagens, e que agora encontraram seu lugar, desfrutando do ambiente da praça ao som de Lulu Santos.
6. Os bêbados: como toda praça cosmopolita, a minha não podia faltar um bar e com eles os seus frequentadores assíduos. O bar em questão fica quase no meio da praça e apesar de seus bêbados serem bastante pacíficos, sendo difícil darem vexame, o dono do estabelecimento resolveu adquirir um Karaôke. Preciso dizer mais alguma coisa? Play list da semana: segunda - pagode e Roberto Carlos, terça - funk, quarta- música de cornô, quinta - rock clássico (??), sexta- música clássicas de cornô, sábado - Michael Jackson e funk. Domingo é dia sagrado, o bar não abre.
7. Os pit boys: na verdade eles não são pit-boys, mas tentam a todo custo passar essa imagem. O primeiro passo para se tornar um pit-boy é entrar numa academia e ficar "bonito" (bombado em cima, pequeninho embaixo). O segundo passo é comprar um moto e modificar o motor dela, se possível comprar um carro e colocar um iiiiiimmmmmmmmmmeeeeeeeeeeennnnnnnnnsssssssssoooooooooo som no porta-malas. Chegam à noite, ou nos momentos da famigerada "pelada". Ficam em cima das suas motos ou abrem seus porta-malas e colocam todos os tipos de música. Ficam no mínimo cinco deles por dia e nunca tocam o mesmo estilo musical. Todo seu esforço se resume em: a) azarar as peguetes e as prostigapiranhas; b) tentar humilhar os outros seres do sexo masculino que não fazem parte da sua turma; c) tornar um inferno acústico as noites de sono da vizinhança. Se trabalham, só querem o dinheiro. Se não trabalham é porque os pais têm dinheiro.
8. Os pobres mortais que moram perto da praça: são todos aqueles que precisam passar pelo ambiente cosmopolita para chegar no aconchego do seu lar. São um tipo exótico visto pelos demais com descrença, desconfiança e até agressividade. Se é mulher (e bonita) recebe olhares mortais das prostigapiranhas e peguetes, e olhares libidinosos dos pit-boys e vagabundos. Se é homem é alvo corrente das prostigariranhas e chacota dos pit-boys. Esses usam a praça num horário mais cedo para levar seus filhos e netos para brincar.
9. Os fofoqueiros: são os mais odiados. Tomam conta de vida de todos. Muitos por que realmente adoram essa atividade, outros por não terem o que fazer. São a maior fonte de divulgação dos babados e casos que ocorre na praça. Em uma sexta-feira santa de determinado ano eles foram a inspiração para a malhação do Judas.
10. O treino da escolinha de futebol: todos os dias à tarde há treinos de um escolinha de futebol. É uma das poucas iniciativas para ocupar as crianças ociosas em torno da praça. Ao mesmo tempo que endurece a musculatura de crianças acostumadas a passar mais horas no computador que brincando, o treino também organiza as peladas até então existentes. É a principal atração da praça nas tardes.
São esses os personagens que se encontram no quarteirão de 600 metros em frente a minha casa. Já tivemos tiros, conversas intímas às 4 horas da manhã, baile funk, festa de rua, violência doméstica, parada policial, comício político, raios, fogos de artifício e balões, apagões, vazamento de esgoto, podas grotescas de árvores, feira de adoção de animais e festival de pipa.
Em todos os momentos, minha praça é sempre movimentada. Caótica é verdade. Inferno sonoro para a maioria da pessoas. Mas me diga que outro meio de socialização tão antiga e eficaz poderia ter sido aplicada aqui para fazer os habitantes da região interagirem? Na época do meu lindo terreirão isso não acontecia. Claro que me lembrarei dessa época com imenso saudosismo. E também não posso afirmar que a atualidade seja ótima. Mas sejamos positivos, nesse ambiente de lazer (até meio dia, já que após é ambiente de perdição, na minha humilde opinião), amizades, inimizades e famílias são construídas. Já passei por muitos lugares, onde aquele pedacinho de terra destinado a socialização, estava ali, abandonado, esperando o grito de uma criança, os velhinhos jogando cartas e os namorados passeando. Claro que eu detesto minha praça. Tomei a decisão de me mudar, após uma quinta-feira ter virado à noite escutando um grupo de homens avaliando as buc%#*&%$s das mulheres da região debaixo da minha janela. Não tenho paz, sossego e silêncio. Sou uma das moradoras antigas que conheceu o antes e o depois do terreno. Mas para os novos moradores, ali é o pedacinho do céu. Onde podem levar (ou em alguns casos largar) os filhos e sentar-se debaixo de uma mangueira e saborear o fruto docinho. Independente do meu gosto, minha praça continua sendo o deleite das pessoas e de todos grupos que ali se encontram. Ela nunca deixou de ter essa característica. No fim, ao se tornar cosmopolita, ela se tornou uma praça de verdade, já que agora não são apenas as crianças melequentas que se encontram ali, mas todo o tipo de pessoas.
P.s.: apesar do aumento do número de pessoas e dos tipos de gente que frequenta a praça, ela continua limpinha .... chega a ser irônico!
P.s.2: se você considerou esse post ofensivo não foi minha intensão. Como eu disse, minha opinião sobre a praça não é das melhores, e estou seguindo a risca a máxima "os incomodados que se mudem", mas reconheço que ela é o centro social da minha região.
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